Paulo Coelho

Stories & Reflections

Vinte anos depois: Entre Ekaterinburg e Novosibirsk

Author: Paulo Coelho

Estou em pleno coraí§í£o da Sibéria. Em alguns momentos, perguntei a mim mesmo pela milésima vez sobre estes 90 dias de peregrinaí§í£o para comemorar os 20 anos de minha peregrinaí§í£o ao Caminho de Santiago. Quando estava em Sofia, pensei em desistir, e agora estou contente porque segui adiante; embora ní£o consiga escrever no trem por causa do constante balaní§o do vagí£o, posso pelo menos anotar algumas coisas, e colocar no computador quando chegar em alguma cidade com conexí£o pela internet. Assim, as pessoas que estiverem acompanhando este blog, terí£o como entender melhor meu estado de espí­rito.

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Uma das pessoas no trem me mostra uma oraí§í£o que, segundo ela, foi encontrada entre os pertences pessoais de um judeu, morto num campo de concentraí§í£o:

“Senhor: quando vieres na Tua glória, ní£o te lembres apenas dos homens de boa vontade; lembra-Te também dos homens de má vontade.

E, no dia do Julgamento, ní£o Te lembres apenas das crueldades, seví­cias, e violíªncias que eles praticaram: lembra-Te também dos frutos que produzimos por causa do que eles nos fizeram. Lembra-Te da paciíªncia, da coragem, da confraternizaí§í£o, da humildade, da grandeza de alma e da fidelidade, que nossos carrascos terminaram por despertar em nossas almas.

Permite entí£o, Senhor, que os frutos por nós produzidos possam servir para salvar as almas dos homens de má vontade.”

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Preciso viver todas as graí§as que Deus me deu hoje. A graí§a ní£o pode ser economizada. Ní£o existe um banco onde depositamos as graí§as recebidas, para utilizá-las de acordo com nossa vontade. Se eu ní£o usufruir destas bíªní§í£os, vou perdíª-las irremediavelmente.

Deus sabe que somos artistas da vida. Um dia nos dá formí£o para esculturas, outro dia pincéis e tela, outro dia nos dá uma pena para escrever. Mas jamais conseguiremos usar formí£o em telas, ou penas em esculturas. A cada dia, o seu milagre. Preciso aceitar as bíªní§í£os de hoje, para criar o que tenho; se fizer isso com desapego e sem culpa, amanhí£ receberei mais.

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A vida é como uma grande corrida de bicicleta – cuja meta é cumprir a lenda Pessoal. Na largada, estamos juntos – compartilhando camaradagem e entusiasmo. Mas, í  medida que a corrida se desenvolve, a alegria inicial cede lugar aos verdadeiros desafios: o cansaí§o, a monotonia, as dúvidas sobre a própria capacidade.

Reparamos que alguns amigos desistiram do desafio – ainda estí£o correndo, mas apenas por que ní£o podem parar no meio de uma estrada; eles sí£o numerosos, pedalam ao lado do carro de apoio, conversam entre si, e cumprem uma obrigaí§í£o.

Terminamos por nos distanciar deles; e entí£o somos obrigados a enfrentar a solidí£o, as surpresas com as curvas desconhecidas, os problemas com a bicicleta. E, ao cabo de algum tempo, comeí§amos a nos perguntar se vale a pena tanto esforí§o.

Sim, vale a pena. É só ní£o desistir.

Além do mais, porque se pararmos de pedalar, terminamos caindo

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De todas as poderosas armas de destruií§í£o que o homem foi capaz de inventar, a mais terrí­vel – e a mais covarde – é a palavra.

Punhais e armas de fogo deixam vestí­gios de sangue. Bombas abalam edifí­cios e ruas. Venenos terminam sendo detectados.

Mas a palavra destruidora consegue despertar o Mal sem deixar pistas. Crianí§as sí£o condicionadas durante anos pelos pais, artistas sí£o impiedosamente criticados, mulheres sí£o sistematicamente massacradas por comentários de seus maridos, fiéis sí£o mantidos longe da religií£o por aqueles que se julgam capazes de interpretar a voz de Deus.

Procure ver se vocíª está utilizando esta arma. Procure ver se estí£o utilizando esta arma em vocíª. E ní£o permita nenhuma destas duas coisas.

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Em um dos seus raros escritos, o sábio sufi Hafik comenta a idéia da Viagem:

“Aceite com sabedoria o fato de que o Caminho está cheio de contradií§íµes. O Caminho muitas vezes nega-se a si mesmo, para estimular o viajante a descobrir o que existe além da próxima curva.

” Se dois companheiros de jornada estí£o seguindo o mesmo método, isto significa que um deles está na pista falsa. Porque ní£o há fórmulas para se atingir a verdade do Caminho, e cada um precisa correr os riscos de seus próprios passos. Só os ignorantes procuram imitar o comportamento dos outros. Os homens inteligentes ní£o perdem seu tempo com isto, e desenvolvem suas habilidades pessoais; sabem que ní£o existem duas folhas iguais numa floresta de cem mil árvores. Ní£o existem duas viagens iguais no mesmo Caminho”

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Provérbios da Sibéria (mas que eu acredito serem universais)

Se ní£o puderes ser uma estrela no céu, seja uma lí¢mpada em sua casa

Depois da morte, o sábio continua vivo, embora seu corpo esteja reduzido a cinzas. Mas o ignorante, mesmo vivo, já está morto.

O amor é uma doení§a da qual ninguém quer livrar-se. Quem foi atacado por ela ní£o procura restabelecer-se, e quem sofre ní£o deseja ser curado.

Quando vires dois dragíµes brigando, fica distante e ní£o procure pacificá-los; eles podem fazer as pazes e terminar lhe atacando.

Próximo texto: 01.06.06

P.S: Estimado leitor,

Durante esta caminhada, que está enchendo minha alma de experiíªncias interessantí­ssimas, um dos momentos mais mágicos é quando chega a noite e posso ler os comentários no blog. Embora ní£o tenha como responder a todos, saibam que é muití­ssimo importante para mim entender que ní£o estou só neste caminho. Muito obrigado pelo apoio e pelas palavras e idéias que estí£o sendo gravadas em meu coraí§í£o.

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