Paulo Coelho

Stories & Reflections

Décimo Terceiro Capí­tulo

Author: Paulo Coelho

Heron Ryan, jornalista

Durante toda aquela manhí£ de 1990, tudo que eu podia ver da janela no sexto andar daquele hotel era o prédio do governo. Acabavam de colocar em seu teto uma bandeira do paí­s, indicando o local exato onde o ditador megalomaní­aco havia fugido de helicóptero, para encontrar-se com a morte poucas horas depois, nas mí£os daqueles que havia oprimido por 22 anos. As casas antigas tinham sido arrasadas por Ceaucescu, no seu plano de fazer uma capital que se rivalizasse com Washington. Bucareste ostentava o tí­tulo da cidade que sofrera a maior destruií§í£o fora de uma guerra ou de uma catástrofe natural.

No dia de minha chegada, ainda tentei caminhar um pouco por suas ruas com meu intérprete, mas ní£o havia muita coisa além de miséria, desorientaí§í£o, senso de que ní£o havia nem futuro, nem passado, nem presente: as pessoas viviam em uma espécie de limbo, sem saber exatamente o que estava se passando em seu paí­s e no resto do mundo. Dez anos mais tarde, quando voltei e vi o paí­s inteiro ressurgindo das cinzas, entendi que o ser humano pode superar qualquer dificuldade “” e o povo romeno era um exemplo disso.

Mas naquela manhí£ cinzenta, naquele cinzento hall de um hotel triste, tudo que me preocupava era saber se o intérprete conseguiria um carro e combustí­vel suficiente para que eu pudesse fazer a pesquisa final do documentário para a BBC. Ele estava demorando, e comecei a encher-me de dúvidas: seria obrigado a voltar para a Inglaterra sem conseguir meu objetivo? Já havia investido uma quantidade significativa de dinheiro em contratos com historiadores, na elaboraí§í£o do roteiro, na filmagem de algumas entrevistas “” mas a televisí£o, antes de assinar o compromisso final, exigia que eu fosse até o tal castelo e saber em que estado se encontrava. A viagem que estava custando mais caro do que eu imaginara.

Tentei telefonar para minha namorada; disseram-me que para conseguir uma linha era necessário esperar quase uma hora. Meu intérprete poderia chegar a qualquer momento com o carro, ní£o havia tempo a perder, resolvi ní£o correr o risco.

Procurei ver se conseguia algum jornal em inglíªs, mas foi impossí­vel. Para matar a ansiedade, comecei a reparar, da maneira mais discreta possí­vel, nas pessoas que estavam ali tomando o seu chá, possivelmente alheias a tudo que havia se passado no ano anterior “” as revoltas populares, os assassinatos a sangue-frio de civis em Timisoara, os tiroteios nas ruas entre o povo e o temido servií§o secreto, que tentava desesperadamente manter o poder que lhe escapava das mí£os. Notei um grupo de tríªs americanos, uma mulher interessante, mas que ní£o desgrudava os olhos de uma revista de moda, e uma mesa cheia de homens que conversavam em voz alta, mas cuja lí­ngua eu ní£o conseguia identificar.

Ia levantar-me pela milésima vez, caminhar até a porta de entrada ver se o intérprete estava chegando, quando ela entrou. Devia ter pouco mais de vinte anos (N.R.: Athena tinha 23 anos quando foi visitar a Romíªnia). Sentou-se, pediu algo para o café-da-manhí£, e vi que falava inglíªs. Nenhum dos homens presentes pareceu notar sua chegada, mas a mulher interrompeu a leitura da revista de moda.

Talvez por causa da minha ansiedade, ou do lugar, que estava me fazendo entrar em depressí£o, eu tomei coragem e me aproximei.

“” Desculpe-me, ní£o costumo fazer isso. Acho que o café-da-manhí£ é a refeií§í£o mais í­ntima do dia.

Ela sorriu, disse seu nome, e eu imediatamente me coloquei em guarda. Tinha sido muito fácil “” podia ser uma prostituta. Mas seu inglíªs era perfeito, e estava discretamente vestida. Resolvi ní£o perguntar nada, e comecei a falar compulsivamente de mim, reparando que a mulher na mesa ao lado tinha deixado a revista e prestava atení§í£o í  nossa conversa.

“” Sou um produtor independente, trabalho para a BBC de Londres, e neste momento tento conseguir uma maneira de ir para a Transilví¢nia…

Vi que seus olhos mudaram de brilho.

-… completar meu documentário a respeito do mito do vampiro.

Aguardei: o assunto sempre despertava curiosidade nas pessoas, mas ela perdeu o interesse assim que mencionei o motivo de minha visita.

“” Basta tomar um í´nibus “” respondeu. “” Embora ní£o creia que vá encontrar o que procura. Se quiser saber mais sobre Drácula, leia o livro. O autor nunca esteve nesta regií£o.

“” E vocíª, conhece a Transilví¢nia?

“” Ní£o sei.

Aquilo ní£o era uma resposta; talvez fosse um problema com a lí­ngua inglesa, apesar do seu sotaque brití¢nico.

“” Mas também estou indo para lá “” continuou. “” De í´nibus, claro.

Por suas roupas, ní£o parecia ser do tipo aventureira, que sai pelo mundo visitando lugares exóticos. A teoria da prostituta voltou; talvez estivesse procurando aproximar-se.

“” Ní£o quer uma carona?

“” Já comprei minha passagem.

Eu insisti, achando que aquela primeira recusa fazia parte do jogo. Mas ela tornou a negar, dizendo que precisava fazer a viagem sozinha. Perguntei de onde era, e notei uma grande hesitaí§í£o, antes de me responder:

“” Da Transilví¢nia, já disse.

“” Ní£o disse exatamente isso. Mas, se for o caso, poderia me ajudar a fazer as locaí§íµes para o filme e…

O meu inconsciente dizia que eu devia explorar o terreno um pouco mais, ainda estava com a idéia da prostituta na cabeí§a, e gostaria muito, muití­ssimo, que ela me acompanhasse. Com palavras educadas, ela recusou minha oferta. A outra mulher entrou na conversa como se resolvesse proteger a moí§a, eu achei que estava sendo inconveniente, e resolvi me afastar.

O intérprete chegou pouco depois, esbaforido, dizendo que tinha arranjado todo o necessário, mas que iria custar um pouco mais caro (eu já esperava). Subi para meu quarto, peguei a mala, que já estava arrumada, entrei em um carro russo caindo aos pedaí§os, atravessei as largas avenidas quase sem trí¢nsito, e notei que estava carregando minha pequena cí¢mera fotográfica, meus pertences, minhas preocupaí§íµes, garrafas de água mineral, sanduí­ches, e a imagem de alguém que insistia em ní£o sair da minha cabeí§a.

Nos dias que se seguiram, ao mesmo tempo que eu procurava construir um roteiro sobre o Drácula histórico, e entrevistava “” sem sucesso, como previsto “” camponeses e intelectuais a respeito do mito do vampiro, ia me dando conta que ní£o estava mais procurando apenas fazer um documentário para a televisí£o inglesa. Eu gostaria de encontrar de novo aquela moí§a arrogante, antipática, auto-suficiente, que tinha visto em um café, num hotel de Bucareste, e que naquele momento devia estar ali, perto de mim; sobre a qual eu ní£o sabia absolutamente nada além do seu nome, mas que, como o mito do vampiro, parecia sugar toda a minha energia em sua direí§í£o.

Um absurdo, uma coisa sem sentido, algo inaceitável para o meu mundo, e para o mundo daqueles que conviviam comigo.

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