Paulo Coelho

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Nhá Chica de Baependi (beatificada em 4 maio 2013)

Author: Paulo Coelho


O que é um milagre?
Existem definií§íµes de todos os tipos: algo que vai contra as leis da natureza, intercessíµes em momentos de crise profunda, coisas cientificamente impossí­veis, etc.
Eu tenho minha própria definií§í£o: milagre é aquilo que enche o nosso coraí§í£o de paz. ís vezes se manifesta sob forma de uma cura, de um desejo atendido, ní£o importa – o resultado é que, quando o milagre acontece, sentimos uma profunda reveríªncia pela graí§a que Deus nos concedeu.

Há vinte e tantos anos atrás, quando eu vivia meu perí­odo hippie, minha irmí£ me convidou para ser padrinho de sua primeira filha. Adorei o convite, fiquei contente que ela ní£o me pediu para que cortasse os cabelos (naquela época, chegavam até a cintura), nem me exigiu um presente caro para a afilhada (eu ní£o teria como comprar).
A filha nasceu, o primeiro ano se passou, e o batizado ní£o acontecia nunca. Achei que minha irmí£ tinha mudado de idéia, fui perguntar o que havia acontecido, e ela respondeu: “Vocíª continua padrinho. Acontece que eu fiz uma promessa para Nhá Chica, e quero batizá-la em Baependi, porque ela me concedeu uma graí§a”.

Ní£o sabia onde era Baependi, e jamais tinha escutado falar de Nhá Chica. O perí­odo hippie passou, eu me tornei executivo de gravadora, minha irmí£ teve uma outra filha, e nada de batizado. Finalmente, em 1978, a decisí£o foi tomada, e as duas famí­lias – dela e de seu ex-marido – foram a Baependi. Ali eu descobri que a tal Nhá Chica, que ní£o tinha dinheiro nem para seu próprio sustento, havia passado 30 anos construindo uma igreja e ajudando os pobres.

Eu vinha de um perí­odo muito turbulento em minha vida, e já ní£o acreditava mais em Deus. Ou melhor, dizendo, já ní£o achava que procurar o mundo espiritual tinha muita importí¢ncia: o que contava eram as coisas deste mundo, e os resultados que pudesse conseguir. Tinha abandonado meus sonhos loucos da juventude – entre os quais, ser escritor – e ní£o pretendia voltar a ter ilusíµes.
Estava ali naquela igreja para apenas cumprir um dever social; enquanto esperava a hora do batizado, comecei a passear pelos arredores, e terminei entrando na humilde casa de Nhá Chica, ao lado da igreja. Dois cí´modos, e um pequeno altar, com algumas imagens de santos, e um vaso com duas rosas vermelhas e uma branca.

Num impulso, diferente de tudo o que eu pensava na época, fiz um pedido: se, algum dia, eu conseguir ser o escritor que queria ser e já ní£o quero mais, voltarei aqui quando tiver 50 anos, e trarei duas rosas vermelhas e uma branca.

Apenas para me lembrar do batizado, comprei um retrato de Nhá Chica. Na volta para o Rio, o desastre: um í´nibus pára subitamente na minha frente, eu desvio o carro numa fraí§í£o de segundo, o meu cunhado também consegue desviar, o carro que vem atrás se choca, há uma explosí£o, vários mortos. Estacionamos na beira da estrada, sem saber o que fazer. Eu procuro no bolso um cigarro, e vem o retrato de Nhá Chica. Silencioso em sua mensagem de proteí§í£o.

Ali comeí§ava minha jornada de volta aos sonhos, í  busca espiritual, í  literatura, e um dia eu me vi de novo no Bom Combate, aquele que vocíª trava com o coraí§í£o cheio de paz, porque é resultado de um milagre. Nunca me esqueci das tríªs rosas. Finalmente, os cinqüenta anos – que naquela época pareciam tí£o distantes – terminaram chegando.

E quase passam. Durante a Copa do Mundo, fui a Baependi pagar minha promessa. Alguém me viu chegando em Caxambu (onde pernoitei), e um jornalista veio me entrevistar. Quando eu contei o que estava fazendo ali, ele pediu:
– Fale sobre Nhá Chica. O corpo dela foi exumado esta semana, e o processo de beatificaí§í£o está no Vaticano. As pessoas precisam dar seu testemunho.
– Ní£o – disse eu. – É uma história muito í­ntima. Só falaria se recebesse um sinal.
E pensei comigo mesmo: “O que seria um sinal? Só mesmo se alguém falasse em nome dela!”

No dia seguinte, peguei o carro, as flores, e fui a Baependi. Parei um pouco distante da igreja, lembrando o executivo de gravadora que estivera ali tanto tempo antes, e as muitas coisas que tinham me conduzido de volta. Quando ia entrando na casa, uma mulher jovem saiu de uma loja de roupas:
– Vi que seu livro “Maktub” é dedicado a Nhá Chica – disse ela. – Garanto que ela ficou contente.

E ní£o me pediu nada. Mas aquele era o sinal que eu estava esperando. E este é o depoimento público que eu precisava dar.

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