Stories & Reflections
Continua sendo impossível escrever no trem, por causa do movimento. Encontro leitores nas estaí§íµes (vejam as fotos na galeria), converso com eles, aprendo muito de seus olhos e das poucas palavras que podemos trocar. Uns contam histórias, outros falam de seus lugares e de suas regiíµes.
Um deles me diz:
“Vocíª sabe exatamente onde está agora? Vocíª está numa estaí§í£o de trem, junto com muita gente, e neste momento existe uma grande chance de várias pessoas abrigarem em seus coraí§íµes as mesmas esperaní§as e desesperaní§as que vocíª abriga.”
“Vamos adiante: vocíª é um pontinho microscópico na superfície de uma bola. Esta bola gira em torno de outra, que por sua vez está localizada num cantinho de uma galáxia, junto com milhíµes de bolas semelhantes.”
“Esta galáxia faz parte de algo chamado Universo, cheio de gigantescos aglomerados estelares. Ninguém sabe exatamente onde comeí§a e onde termina o que chamam de Universo.”
“Mesmo assim, ní£o se deixe vencer pelo cansaí§o da viagem: vocíª luta, se esforí§a, e tenta melhorar, tem sonhos, fica alegre ou triste por causa do Amor. Se vocíª ní£o estivesse vivo, algo ia estar faltando.”
Ní£o sei de onde o leitor tirou estas palavras (ele estava lendo um papel) mas eu precisava ouvi-las naquele momento.
*****
Duas paradas mais adiante, uma leitora me conta uma história sobre um carpinteiro e seus auxiliares que viajavam pela província de Qi (estamos, neste momento muito perto da China), em busca de material para construí§íµes. Viram uma árvore gigantesca; cinco homens de mí£os dadas ní£o conseguiam abraí§á-la, e seu topo era tí£o alto que quase tocava as nuvens.
– Ní£o vamos perder nosso tempo com esta árvore – disse o mestre carpinteiro.- Para cortá-la, demoraremos muito. Se quisermos fazer um barco, ele afundará, de tí£o pesado o seu tronco. Se resolvermos usá-la para a estrutura de um teto, as paredes terí£o que ser exageradamente resistentes.
O grupo seguiu adiante. Um dos aprendizes comentou:
– É uma árvore tí£o grande e ní£o serve para nada!
– Vocíª está enganado – disse o mestre carpinteiro. – Ela seguiu seu destino a sua maneira. Se fosse igual as outras, nós já a teríamos cortado, mas porque teve coragem de ser diferente, permanecerá viva e forte por muito tempo.
*****
Os taoístas contam que, no início dos tempos, o Espírito e a Matéria lutaram entre si um combate mortal. Finalmente o Espírito triunfou – e a Matéria foi condenada a viver para sempre no interior da Terra.
Antes que isto acontecesse, porém, sua cabeí§a bateu no firmamento, e reduziu a pedaí§os o céu estrelado.
A deusa Niuka saiu do mar, resplandecente em sua armadura de fogo. Fervendo as cores do arco-íris num caldeirí£o, foi capaz de recolocar as estrelas em seu lugar, mas ní£o conseguiu encontrar dois pequenos cacos, e o firmamento ficou incompleto.
Esta é a origem do amor: duas almas sempre estí£o percorrendo a Terra, em busca de sua Outra Parte. Quando encontram, conseguem encaixar os dois pedaí§os que faltam no céu, e o Universo inteiro passa a fazer sentido para o casal.
Enquanto o trem transiberiano atravessa esta longa estepe, penso constantemente nisso.
*****
Por incrível que pareí§a, muita gente tem medo da felicidade. Para estas pessoas, estar de bem com a vida significa mudar uma série de hábitos – e perder sua própria identidade.
Muitas vezes nos julgamos indignos das coisas boas que acontecem conosco. Ní£o aceitamos os milagres – porque aceitá-los nos dá a sensaí§í£o de que estamos devendo alguma coisa a Deus. Além disso, temos medo de nos “acostumar” com a felicidade.
Pensamos: “é melhor ní£o provar o cálice da alegria, porque, quando este nos faltar, iremos sofrer muito”.
Por medo de diminuir, deixamos de crescer, Por medo de chorar, deixamos de rir.
*****
No trem, encontro alguém que chega de Marrocos e me conta uma curiosa história sobre como certas tribos do deserto víªem o pecado original.
Eva passeava pelo Jardim do Éden, quando a serpente se aproximou.
“Coma esta maí§í£”, disse a serpente.
Eva, muito bem instruída por Deus, recusou.
“Coma esta maí§í£”, insistiu a serpente, “porque vocíª precisa ficar mais bela para o seu homem”.
” Ní£o preciso”, respondeu Eva. “Porque ele ní£o tem outra mulher além de mim”.
A serpente riu:
“Claro que tem”.
E como Eva ní£o acreditasse, levou-a até o alto de uma colina, onde existia um poí§o.
“Ela está dentro desta caverna; Adí£o escondeu-a ali”.
Eva debruí§ou-se e viu, refletida na água do poí§o, uma linda mulher. Na mesma hora comeu a maí§í£ que a serpente lhe oferecia.
Segundo esta mesma tribo de Marrocos, volta ao Paraíso todo aquele que se reconhece no reflexo do poí§o, e ní£o teme mais a si mesmo.
Próximo texto: 04.06.06
P.S: Estimado leitor,
Durante esta caminhada, que está enchendo minha alma de experiíªncias interessantíssimas, um dos momentos mais mágicos é quando chega a noite e posso ler os comentários no blog. Embora ní£o tenha como responder a todos, saibam que é muitíssimo importante para mim entender que ní£o estou só neste caminho. Muito obrigado pelo apoio e pelas palavras e idéias que estí£o sendo gravadas em meu coraí§í£o.
Paulo Coelho