Paulo Coelho

Stories & Reflections

Vinte anos depois: Entre Novosibirsk e Irkutsk

Author: Paulo Coelho

Continua sendo impossí­vel escrever no trem, por causa do movimento. Encontro leitores nas estaí§íµes (vejam as fotos na galeria), converso com eles, aprendo muito de seus olhos e das poucas palavras que podemos trocar. Uns contam histórias, outros falam de seus lugares e de suas regiíµes.

Um deles me diz:

“Vocíª sabe exatamente onde está agora? Vocíª está numa estaí§í£o de trem, junto com muita gente, e neste momento existe uma grande chance de várias pessoas abrigarem em seus coraí§íµes as mesmas esperaní§as e desesperaní§as que vocíª abriga.”

“Vamos adiante: vocíª é um pontinho microscópico na superfí­cie de uma bola. Esta bola gira em torno de outra, que por sua vez está localizada num cantinho de uma galáxia, junto com milhíµes de bolas semelhantes.”

“Esta galáxia faz parte de algo chamado Universo, cheio de gigantescos aglomerados estelares. Ninguém sabe exatamente onde comeí§a e onde termina o que chamam de Universo.”

“Mesmo assim, ní£o se deixe vencer pelo cansaí§o da viagem: vocíª luta, se esforí§a, e tenta melhorar, tem sonhos, fica alegre ou triste por causa do Amor. Se vocíª ní£o estivesse vivo, algo ia estar faltando.”

Ní£o sei de onde o leitor tirou estas palavras (ele estava lendo um papel) mas eu precisava ouvi-las naquele momento.

*****

Duas paradas mais adiante, uma leitora me conta uma história sobre um carpinteiro e seus auxiliares que viajavam pela proví­ncia de Qi (estamos, neste momento muito perto da China), em busca de material para construí§íµes. Viram uma árvore gigantesca; cinco homens de mí£os dadas ní£o conseguiam abraí§á-la, e seu topo era tí£o alto que quase tocava as nuvens.

– Ní£o vamos perder nosso tempo com esta árvore – disse o mestre carpinteiro.- Para cortá-la, demoraremos muito. Se quisermos fazer um barco, ele afundará, de tí£o pesado o seu tronco. Se resolvermos usá-la para a estrutura de um teto, as paredes terí£o que ser exageradamente resistentes.

O grupo seguiu adiante. Um dos aprendizes comentou:

– É uma árvore tí£o grande e ní£o serve para nada!

– Vocíª está enganado – disse o mestre carpinteiro. – Ela seguiu seu destino a sua maneira. Se fosse igual as outras, nós já a terí­amos cortado, mas porque teve coragem de ser diferente, permanecerá viva e forte por muito tempo.

*****

Os taoí­stas contam que, no iní­cio dos tempos, o Espí­rito e a Matéria lutaram entre si um combate mortal. Finalmente o Espí­rito triunfou – e a Matéria foi condenada a viver para sempre no interior da Terra.

Antes que isto acontecesse, porém, sua cabeí§a bateu no firmamento, e reduziu a pedaí§os o céu estrelado.

A deusa Niuka saiu do mar, resplandecente em sua armadura de fogo. Fervendo as cores do arco-í­ris num caldeirí£o, foi capaz de recolocar as estrelas em seu lugar, mas ní£o conseguiu encontrar dois pequenos cacos, e o firmamento ficou incompleto.

Esta é a origem do amor: duas almas sempre estí£o percorrendo a Terra, em busca de sua Outra Parte. Quando encontram, conseguem encaixar os dois pedaí§os que faltam no céu, e o Universo inteiro passa a fazer sentido para o casal.

Enquanto o trem transiberiano atravessa esta longa estepe, penso constantemente nisso.

*****

Por incrí­vel que pareí§a, muita gente tem medo da felicidade. Para estas pessoas, estar de bem com a vida significa mudar uma série de hábitos – e perder sua própria identidade.

Muitas vezes nos julgamos indignos das coisas boas que acontecem conosco. Ní£o aceitamos os milagres – porque aceitá-los nos dá a sensaí§í£o de que estamos devendo alguma coisa a Deus. Além disso, temos medo de nos “acostumar” com a felicidade.

Pensamos: “é melhor ní£o provar o cálice da alegria, porque, quando este nos faltar, iremos sofrer muito”.

Por medo de diminuir, deixamos de crescer, Por medo de chorar, deixamos de rir.

*****

No trem, encontro alguém que chega de Marrocos e me conta uma curiosa história sobre como certas tribos do deserto víªem o pecado original.

Eva passeava pelo Jardim do Éden, quando a serpente se aproximou.

“Coma esta maí§í£”, disse a serpente.

Eva, muito bem instruí­da por Deus, recusou.

“Coma esta maí§í£”, insistiu a serpente, “porque vocíª precisa ficar mais bela para o seu homem”.

” Ní£o preciso”, respondeu Eva. “Porque ele ní£o tem outra mulher além de mim”.

A serpente riu:

“Claro que tem”.

E como Eva ní£o acreditasse, levou-a até o alto de uma colina, onde existia um poí§o.

“Ela está dentro desta caverna; Adí£o escondeu-a ali”.

Eva debruí§ou-se e viu, refletida na água do poí§o, uma linda mulher. Na mesma hora comeu a maí§í£ que a serpente lhe oferecia.

Segundo esta mesma tribo de Marrocos, volta ao Paraí­so todo aquele que se reconhece no reflexo do poí§o, e ní£o teme mais a si mesmo.

Próximo texto: 04.06.06

P.S: Estimado leitor,

Durante esta caminhada, que está enchendo minha alma de experiíªncias interessantí­ssimas, um dos momentos mais mágicos é quando chega a noite e posso ler os comentários no blog. Embora ní£o tenha como responder a todos, saibam que é muití­ssimo importante para mim entender que ní£o estou só neste caminho. Muito obrigado pelo apoio e pelas palavras e idéias que estí£o sendo gravadas em meu coraí§í£o.

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