Paulo Coelho

Stories & Reflections

Décimo Segundo Capí­tulo

Author: Paulo Coelho

Samira R. Khalil, mí£e de Athena

Foi como se todas as suas conquistas profissionais, sua capacidade de ganhar dinheiro, sua alegria com o novo amor, seu contentamento quando brincava com meu neto, tudo isso tivesse sido jogado para um segundo plano. Eu fiquei simplesmente aterrorizada quando Sherine me comunicou a decisí£o de ir em busca da sua mí£e de sangue.

No iní­cio, é claro, consolava-me a idéia de que já ní£o existia mais o centro de adoí§í£o, as fichas tivessem sido perdidas, os funcionários se mostrassem implacáveis, o governo tinha acabado de cair e era impossí­vel viajar, ou o ventre que a trouxe a esta terra já ní£o estivesse mais neste mundo. Mas foi um consolo momentí¢neo: minha filha era capaz de tudo, e conseguia superar situaí§íµes que pareciam impossí­veis.

Até aquele momento, o assunto era um tabu na famí­lia. Sherine sabia que fora adotada, já que o psiquiatra em Beirute me aconselhara a contar logo que tivesse suficiente idade para compreender. Mas nunca demonstrou curiosidade em saber de que regií£o viera “” seu lar tinha sido Beirute, quando ainda era um lar para todos nós.

Como o filho adotado de uma amiga minha terminou se suicidando quando ganhou uma irmí£ biológica “” e ele tinha apenas 16 anos! “”, nós evitamos ampliar nossa famí­lia, fizemos todos os sacrifí­cios necessários para que entendesse que era a única razí£o de minhas alegrias e minhas tristezas, dos meus amores e das minhas esperaní§as. Mesmo assim, parecia que nada disso contava; meu Deus, como os filhos podem ser tí£o ingratos!

Conhecendo minha filha, sabia que ní£o adiantava argumentar nada disso com ela. Eu e meu marido passamos uma semana sem dormir, e todas as manhí£s, todas as tardes, éramos bombardeados com a mesma pergunta: em que cidade da Romíªnia eu nasci? Para agravar a situaí§í£o, Viorel chorava, porque parecia estar entendendo tudo que acontecia.

Resolvi consultar de novo um psiquiatra. Perguntei por que uma moí§a que tinha tudo na vida estava sempre tí£o insatisfeita.

“” Todos nós queremos saber de onde viemos “” disse ele. “” Essa é a questí£o fundamental do ser humano no plano filosófico. No caso de sua filha, acho perfeitamente justo que procure saber suas origens. A senhora ní£o teria esta curiosidade?

Ní£o, eu ní£o teria. Muito pelo contrário, acharia um perigo ir em busca de alguém que me recusou e me rejeitou, quando ainda ní£o tinha forí§as para sobreviver.

Mas o psiquiatra insistiu:

“” Ao invés de entrar em confronto com ela, procure ajudá-la. Talvez, vendo que isso ní£o é um problema para a senhora, ela desista. O ano que passou distante de todos os seus amigos deve ter criado uma caríªncia emocional, que agora ela está procurando compensar através de provocaí§íµes sem importí¢ncia. Apenas para ter certeza que é amada.

Teria sido melhor que Sherine tivesse ido, ela mesma, ao psiquiatra: assim compreenderia as razíµes do seu comportamento.

“” Demonstre confianí§a, ní£o veja nisso uma ameaí§a. E se no final ela realmente quiser ir adiante, resta apenas dar os elementos que pede. Pelo que entendo, ela sempre foi uma menina problemática; quem sabe sairá mais fortalecida através desta busca.

Perguntei se o psiquiatra tinha filhos. Ele disse que ní£o, e logo entendi que ní£o era a pessoa indicada para me aconselhar.

Naquela noite, quando estávamos diante da televisí£o, Sherine voltou ao assunto:

“” O que estí£o assistindo?

“” O noticiário.

“” Para quíª?

“” Para saber as novidades do Lí­bano “” respondeu meu marido.

Eu percebi a armadilha, mas já era tarde. Sherine aproveitou-se imediatamente da situaí§í£o.

“” Enfim, vocíªs também estí£o curiosos para saber o que está acontecendo na terra em que nasceram. Estí£o bem estabelecidos na Inglaterra, tíªm amigos, papai ganha muito dinheiro aqui, vivem em seguraní§a. Mesmo assim, compram jornais libaneses. Mudam de canal até que surja alguma notí­cia relacionada com Beirute. Imaginam o futuro como se ele fosse o passado, sem se dar conta que esta guerra ní£o acaba nunca.

“Ou seja: se ní£o estí£o em contato com suas origens, sentem que perderam o contato com o mundo. Custa entender o que estou sentindo?”

“” Vocíª é nossa filha.

“” Com muito orgulho. E serei para sempre a filha de vocíªs. Por favor, ní£o tenham dúvidas de meu amor e minha gratidí£o por tudo que fizeram; eu ní£o estou pedindo nada além de colocar meus pés no verdadeiro lugar onde nasci. Talvez perguntar í  minha mí£e de sangue por que me abandonou, ou talvez deixar o assunto para lá, quando olhar nos seus olhos. Se ní£o tentar fazer isso, vou me achar covarde, e ní£o poderei jamais entender os espaí§os em branco.

“” Os espaí§os em branco?

“” Aprendi caligrafia enquanto estava em Dubai. Daní§o sempre que posso. Mas a música só existe porque existem as pausas. As frases só existem porque existem os espaí§os em branco. Quando estou fazendo algo, me sinto completa; mas ninguém pode viver em atividade durante as 24 horas do dia. No momento em que paro, sinto que algo está faltando.

“Vocíªs disseram mais de uma vez que sou uma pessoa inquieta por natureza. Mas ní£o escolhi esta maneira de viver: gostaria de poder estar aqui, tranqüila, também assistindo televisí£o. É impossí­vel: minha cabeí§a ní£o pára. í€s vezes penso que vou enlouquecer, preciso estar sempre daní§ando, escrevendo, vendendo terrenos, cuidando de Viorel, lendo qualquer coisa que me cai adiante. Acham normal?”

“” Talvez seja seu temperamento “” disse meu marido.

A conversa terminou ali, da maneira que sempre terminava: Viorel chorando, Sherine fechando-se em seu mutismo, e eu certa de que os filhos nunca reconhecem o que os pais fazem por eles. Entretanto, durante o café-da-manhí£ no dia seguinte, foi meu marido quem puxou o assunto:

“” Há algum tempo, quando vocíª estava no Oriente Médio, eu tentei ver as condií§íµes de voltar para casa. Fui até a rua onde vivemos; a casa ní£o existe mais, embora o paí­s esteja sendo reconstruí­do, mesmo com a ocupaí§í£o estrangeira e as invasíµes constantes. Experimentei uma sensaí§í£o de euforia; quem sabe era o momento de recomeí§ar tudo de novo? E foi justamente esta palavra, “recomeí§ar”, que me trouxe de volta í  realidade. Eu já passei do tempo onde podia me dar a esse luxo; hoje em dia, quero continuar o que estou fazendo, ní£o preciso de novas aventuras.

“Procurei as pessoas que costumava encontrar para beber uns copos de uí­sque no final da tarde. A maioria ní£o está mais ali, as que ficaram vivem se queixando da constante sensaí§í£o de inseguraní§a. Caminhei pelos lugares onde passeava, e me senti um estranho, como se nada daquilo me pertencesse mais. O pior de tudo é que o sonho de retornar um dia ia desaparecendo í  medida que eu me encontrava com a cidade onde nasci.

“Mesmo assim, foi necessário. As caní§íµes do exí­lio ainda continuam em meu coraí§í£o, mas sei que ní£o tornarei nunca mais a viver no Lí­bano. De alguma maneira, os dias passados em Beirute me ajudaram a entender melhor o lugar onde estou agora, e valorizar cada segundo que passo em Londres.”

“” O que vocíª está querendo me dizer, papai?

“” Que vocíª está certa. Talvez seja melhor mesmo entender estes espaí§os brancos. Podemos ficar com Viorel enquanto estiver viajando.

Ele foi até o quarto, e voltou com uma pasta amarelada. Eram os papéis de adoí§í£o “” que estendeu para Sherine. Deu-lhe um beijo, e disse que já era hora de partir para o trabalho.

Próximo e último texto: 27.09.06

Subscribe to Blog

Join 17K other subscribers

Stories & Reflections

Social

Paulo Coelho Foundation

Gifts, keepsakes and other souvenirs

Souvenirs