Stories & Reflections
Muitos leitores í s vezes se queixam de que falo pouco de minha vida pessoal nesta coluna. Falo muito – principalmente de minhas indagaí§íµes no mundo imaginário. Eles insistem: “mas como é sua vida?” Pois bem: durante uma semana saí com um caderno e anotei mais ou menos o que acontece em sete dias:
Domingo: 1] dirijo em silíªncio os 540 kms de Paris a Genebra. Seis horas e nenhuma conclusí£o importante, nenhuma revelaí§í£o extraordinária. Como adoro meu trabalho, me impus jamais pensar no tema aos domingos, de modo que procuro me controlar.
2] Posto de gasolina: vejo uma coleí§í£o interessantíssima de maquetes de metal. Penso em comprar tudo, mas imagino que mais adiante terei excesso de bagagem, e muitas podem quebrar na viagem. Usarei a internet para isso.
3] Banho. Cochilo. Jantar com uma amiga. Ela me conta que o homem no qual está interessada quer apenas fazer amor, nada mais. Ní£o sei o que responder.
Segunda-feira: 1] o despertador toca as 10:15, e como Plano B (os nascidos em Virgem sempre tem um Plano B) a telefonista do hotel também chama o quarto. Estou aqui na condií§í£o de membro da diretoria de uma respeitada fundaí§í£o, e hesito em usar ou ní£o as botas de cowboy trabalhadas em vermelho, branco, e negro. Decido que irei com elas – aos artistas certas coisas sí£o toleradas.
2] Rápido café-da-manhí£ com um amigo que trabalha em banco. Pergunto o que pensa da crise atual – e me dá uma série de respostas nas quais nem ele mesmo acredita. Mostro o jornal do dia: uma conferíªncia de banqueiros, para contornar a crise. Um deles afirma que ní£o conhecem direito os “produtos financeiros” que estí£o vendendo. í“timo que tenho meu dinheiro na poupaní§a: os nascidos em Virgem ní£o correm riscos nesta área.
3] Almoí§o com a diretoria. Pergunto o que acham da situaí§í£o na Geórgia. Ninguém quer falar do assunto, mas adoraram minhas botas de cowboy.
4] A reunií£o é ótima, sem stress. Aprendo muito. No final, ao entrar no carro, esqueí§o os documentos no teto.
5] quando saio, os documentos caem no meio da rua. Fico meia-hora juntando tudo, com carros buzinando e me insultando. Um membro da diretoria passa, pára mais adiante, pergunta se quero ajuda. Digo que ní£o, basta um arriscando a vida por razí£o tí£o estúpida.
6] Hoje posso telefonar usando o sistema “mí£os livres”, enquanto dirijo. Peí§o que Mí´nica, minha agente, cancele Praga e Berlim (cada vez que viajo, sinto menos vontade de viajar). Ela diz que precisamos nos encontrar antes da Feira de Frankfurt para “acertar uns detalhes”. Paris ou Barcelona? Paris, ela decide. Chamo Paula, minha assistente, para perguntar por que o meu blog teve poucos comentários ontem – ela explica que mudaram a configuraí§í£o, e acaba de aprovar cem comentários.
7] Chego em Paris í s onze horas da noite. Esperava ter uma montanha de coisas me esperando, mas ali estí£o apenas dois pacotes de livros para autografar, e umas poucas cartas. Mas eu viajei! Estive em outro país! Me dou conta que viajei um pouco mais de 24 horas.
8] Jantar. Deixo o computador ligado, para baixar “American History X”. Vou dormir em torno de duas da manhí£, depois de ler algumas páginas de “Meu ano como membro do Islí£ radical”, de Daveed Gartstenstein-Ross. O livro é ótimo, mas ní£o consigo avaní§ar muito.
Terí§a-feira: 1] As 10:00 hs, café com leite, suco de laranja, pí£o com azeite – é sempre a mesma coisa, mesmo quando estou em hotéis, o que acontece a maior parte do ano. Tríªs comprimidos de Echinacea, uma erva que dizem fortalecer o organismo contra gripes, e que tem se mostrado fiel í sua reputaí§í£o (mesmo que ní£o haja base científica para isso).
2] Internet: Leitura de e-mails de leitores. Leitura de e-mails de trabalho (meu escritório filtra os mais relevantes), ler os clippings, visitar um portal no Brasil e outro nos Estados Unidos para ler as notícias do dia. Vejo que os assuntos sí£o mais ou menos os de sempre: permissí£o para citar algum trecho meu em livros (sempre dada), convites para conferíªncias (sempre recusados). Hoje tenho uma entrevista para um jornal na Finlí¢ndia, que irá publicar estas colunas. Fico uma hora diante do computador.
3] Caminhar uma hora sem parar – esteja onde estiver, raramente deixo de fazer isso. Hoje convidei minha assistente para me acompanhar; acaba de voltar de férias no Brasil, e deve se casar em Outubro. Conversamos sobre as férias.
4] de volta ao computador. Atualizando o blog, lendo uma entrevista que o ator estúpido David Thewlis, que diz que seu papel em “Veronika decide morrer” (que estréia ano que vem) foi “só mais duas semanas de trabalho”.Fico irritado. Leio o resto da entrevista e vejo que reclama de tudo que fez na vida. A irritaí§í£o vai embora.
5] Tiro com arco. Banho. Computador de novo. Peí§o que chequem mais uma vez se ní£o há problema com o ví´o de domingo para o Brasil. Em princípio, ní£o há.
6] Esqueci de anotar onde jantei. Assisto “Bem-vindo a Sarajevo”. Leio, de cabo a rabo, o Herald Tribune. Tento pegar o “Meu ano no Islí£ radical”, mas ní£o passo de poucas páginas.
Quarta-feira: 1] o mesmo que 1, 2, 3 acima, exceto que desta vez minha companheira de caminhada se chama Maarit, uma leitora que encontrei na comunidade social Myspace. Ela está estudando para ser freira. Conversamos muito sobre a situaí§í£o da Igreja Católica, e prometemos que vamos manter o contato.
2] Mí´nica chega. Conversamos de 15:00 hs até as duas da manhí£ do dia seguinte, discutindo o programa de laní§amento do novo livro, o que devo dizer em Frankfurt, e onde será a festa de aniversário dela (faz 40 anos em novembro). Sugiro que seja em sua casa em Barcelona, mas ela diz que colocaram um andaime e ní£o dá para ver a vista da cidade. Respondo que de noite todas as vistas de cidade sí£o iguais – um monte de luzes piscando. Mesmo assim ela ní£o se convence. Diz que eu preciso dar mais entrevistas. Passamos todo este tempo trancados no apartamento, já que Mí´nica simplesmente odeia andar. Chris preparou o jantar e já foi dormir há muito tempo.
3] As 2:15 da manhí£ eu digo que estou cansado, quero dormir, mas ela parece tí£o brejeira como se tivesse acordado naquele momento; e foi ela quem viveu hoje a experiíªncia na cí¢mara de torturas que conhecemos sob o nome de “aeroporto.”
4] Consigo convencíª-la a dormir as 2:30 da manhí£. Ainda com uma série de assuntos pendentes. Hoje nada de Herald Tribune, ou “Meu ano no Islí£ radical”.
Quinta-feira: 1] Café da manhí£ com Mí´nica, minha agente e amiga, que passou menos de um dia em Paris, e gastou 10 horas conversando comigo (no mesmo lugar, pois detesta andar, apesar do lindo dia de outono). Ela parte para Barcelona, e eu vou para o computador verificar os e-mails, os pedidos de autorizaí§í£o, os convites (tudo já devidamente filtrado pelo escritório). Leitura de e-mails de leitores.
2] a bobagem do dia fica por conta de Frei Betto, um religioso brasileiro, que até minutos antes eu considerava meu amigo, mas que é autor de uma coluna publicada em um jornal do interior, onde me ataca gratuitamente – melhor dizendo, ataca tudo que signifique “cultura popular”. Com a internet, sabemos tudo. Mando um e-mail para ele cortando qualquer laí§o de amizade. Por precauí§í£o, mando cópias para todos os amigos comuns que temos, de modo a ter certeza que chegará em suas mí£os.
3] Juliette chega para pegar emprestado um sistema de som que ganhei enquanto estava em St. Moritz, na Suíí§a. É para a festa surpresa de seu marido, que comemora 40 anos (parece que todo mundo ao meu redor está comemorando 40 anos). O sistema de som parece uma torradeira elétrica, mas na verdade emite impulsos digitais, o que permite que a música seja ouvida com a mesma intensidade e altura em uma sala para 200 pessoas. Nunca usei, mas pelo menos está ajudando uma amiga.
4] Caminhar uma hora, como sempre. Tiro com arco, como sempre. Escrever minha coluna semanal (que estí£o lendo agora).
5] Jantar com Chris em um restaurante japoníªs. Peí§o o mesmo prato. Ní£o sei porque, sempre que vou a um restaurante novo e gosto do que comi, termino repetindo. Falta de imaginaí§í£o, eu acho.
Sexta-feira: 1] café da manhí£, computador, caminhada. Atualizaí§í£o do blog diário.
2] Pego meu jornal e vou passar o dia no Champ de Mars, perto de meu apartamento em Paris. Fico olhando as pessoas se preparando para o inverno: a maior parte está tirando fotos da Torre Eifell ou falando no celular. Passo diante de um museu (Museu Branly), vejo que ní£o tem fila e decido entrar. Exposií§í£o de arte indígena de vários continentes do mundo – comeí§o a imaginar que há alguma coisa de errado com nossa civilizaí§í£o, já que estas tribos e pessoas sí£o capazes de fazer trabalhos muito mais interessantes e contundentes que o que vemos hoje no terreno das artes plásticas. Mas ní£o adianta reclamar nem escrever a respeito – existem teses e mais teses sobre os “conceitos artísticos” contemporí¢neos, que incluem uma vaca embebida em formol (vendida por 30 milhíµes de dólares) e duas paredes de ferro oxidado (preí§o em torno de 5 milhíµes de dólares). Acho que Frei Betto, em sua nova encarnaí§í£o como intelectual de vanguarda, deve ter também uma tese defendendo isso.
3] Volto para casa, as malas estí£o prontas, o chofer espera, o carro se dirige para o aeroporto Charles de Gaulle. O ví´o está marcado para as 22:15, mas a atual cí¢mara de tortura (conhecida como “aeroporto”) exige que estejamos lá uma eternidade antes.
4] Decolagem as 23:50 (uma hora de atraso). Passarei uns vinte dias no Brasil antes de ir para Frankfurt. Mas como sempre, ní£o irei a nenhum restaurante da moda, o que significa que em breve estarei escutando a mesma pergunta: “quando é que vocíª vem í sua terra?”
Pelo que entendo, quem ní£o vai a restaurante da moda ní£o existe.