Paulo Coelho

Stories & Reflections

5 MIN LEITURA “Papai escrevi um livro sobre minha internação”

Author: Paulo Coelho

“Entrei num pequeno cubículo, com paredes de ladrilho. Havia uma cama coberta por uma manta de borracha, e um aparelho com uma manivela na cabeceira. 

– Então, vou tomar choque elétrico – disse para o Dr. Benjamim Gaspar Gomes. 

– Não se preocupe. – É muito mais traumático ver do que de levar. Não dói nada. 

Deitei-me, e o enfermeiro colocou uma espécie de tubo em minha boca, para que não enrolasse a língua. Depois, colocou dois terminais, parecidos com os auriculares de telefone, nas minhas têmporas. 

Eu estava olhando o teto meio descascado do cubículo, quando escutei rodar a manivela. No momento seguinte, parecia que uma cortina se fechava diante dos meus olhos; a visão foi rapidamente se concentrando em apenas um ponto, e tudo ficou escuro. 

O médico tinha razão; não doeu nada.“

 

A cena que acabo d descrever não faz parte do meu livro, “Veronika Decide Morrer”. Eu a escrevi em meu diário, durante minha segunda internação em um hospital para doentes mentais. Corria o ano de 1966, o Brasil começava a viver o período negro da ditadura militar (1964-1989), e, por uma reação natural do mecanismo social, a repressão externa começava a se transformar numa repressão interna (mais ou menos o que acontece hoje nos EUA, onde ninguém mais olha uma mulher sem ter um advogado ao lado).

Para tanto, era inadmissível que as boas famílias de classe média aceitassem que seus filhos ou netos fossem “artistas”. No Brasil daquela época, esta palavra era sinônimo de homossexual, comunista, drogado e vagabundo. 

Aos 18 anos, eu acreditava que o mundo de meus pais e o meu mundo podiam conviver pacificamente.  Fazia o possível para ter boas notas no colégio jesuíta onde estudava, trabalhava durante a tarde, mas, quando chegava à noite, ia viver o meu verdadeiro sonho: “ser artista”. Como não sabia exatamente por onde começar, a única maneira, foi engajando-me num grupo amador de teatro. Embora jamais tivesse qualquer sonho de atuar profissionalmente, pelo menos estava entre pessoas com as quais tinha afinidades. 

Infelizmente, meus pais não pensavam que dois mundos extremos pudessem conviver. E um belo dia, depois de uma noite quando cheguei bêbado em casa, fui acordado por dois enfermeiros musculosos, me olhando.

– Você precisa vir conosco – disse um deles.

 Minha mãe chorava, meu pai procurava esconder qualquer emoção. 

– É para o seu bem-dizia ele. – Vamos fazer uns exames.

E foi assim que começou minha peregrinação pelos hospitais psiquiátricos. Eu era internado, passava pelos tratamentos mais diversos, terminava fugindo na primeira oportunidade, viajava até não aguentar mais, retornava para a casa de meus pais. Vivíamos um período de lua-de-mel, tornava a entrar para a escola, logo procurava o que a família chamava de “más companhias”, e de novo os enfermeiros apareciam. 

Existem certos combates na vida que só tem dois resultados possíveis: ou nos destroem, ou nos fazem mais fortes. O hospital psiquiátrico foi um destes combates. 

Certa noite, conversando com outro interno, eu disse: 

“Sabe de uma coisa? Penso que todo homem, em algum momento da vida, já sonhou em ser presidente da república. Nem você, nem eu, podemos aspirar a isso, porque nossa biografia não nos deixará. 

“Então não temos mais nada a perder” respondeu o interno. “Vamos fazer o que nos der na cabeça”. 

Senti que ele tinha razão. A situação que eu me encontrava era tão inusitada, tão extrema, que trazia consigo ou aspecto até então desconhecido: a liberdade total. O esforço que minha família tinha feito para que eu fosse igual a todos, dera o resultado exatamente oposto: eu agora era uma pessoa completamente diferente dos meus companheiros de geração. 

Naquela mesma noite, analisei meu futuro. Uma das alternativas era ser escritor. A outra, que me parecia muito mais viável, era tornar-me definitivamente louco. Seria sustentado pelo Estado, não precisaria trabalhar nunca mais, assumir qualquer responsabilidade. Claro, teria que passar muitos dias num asilo de doentes mentais, mas – por experiência própria, eu sabia que os internos não se comportavam como os loucos de filmes de Hollywood; com exceção dos casos patológicos como catatonia ou esquizofrenia, todos os outros eram capazes de discutir sobre a vida com uma rara originalidade em suas avaliações. Vez por outra tinham ataques de pânico, depressão, agressividade – mas eram passageiros. 

O grande perigo que corri no hospital psiquiátrico não foi perder, para sempre, a possibilidade de ser Presidente da República. Tampouco foi o fato de considerar-me marginalizado, ou injustiçado pela minha família – porque meu coração entendia perfeitamente que as internações eram um ato desesperado de amor, de superproteção. O grande perigo que corri foi achar que a situação que me encontrara era normal. 

Quando saí pela terceira vez, seguindo o famoso ciclo de fuga/ viagem/ volta para casa/ lua-de-mel com a família/ más companhias/ internação, eu já tinha quase 20 anos, e me acostumara com este ritmo. Desta vez, porém, alguma coisa havia mudado. 

Apesar de voltar a encontrar-me com as “más companhias”, meus pais estavam relutando em internar-me de novo; sem que eu soubesse, eles já estavam convencidos que eu era um caso perdido, e preferiam me ter junto a eles, sustentando-me pelo resto da vida. 

Eu me tornava cada vez pior, mais agressivo, e nada de internação. Houve um período de alegria, onde procurei exercer minha suposta liberdade para, finalmente, viver minha vida de “artista”. Larguei o novo emprego que me tinham conseguido, parei de estudar, dediquei-me exclusivamente ao teatro e aos bares de intelectuais. Durante um longo ano fiz apenas o que quis até que o grupo de teatro foi dissolvido pela polícia política, os bares passaram a ser espionados, os meus contos eram sempre rejeitados pelos editores, nenhuma das meninas que conhecia tinha qualquer interesse em me namorar – porque eu era um jovem sem futuro, sem carreira definida, sem mesmo ter entrado em uma universidade. 

Então, um belo dia resolvi quebrar todo o meu quarto. Era uma maneira de dizer, sem palavras: “será que vocês não entendem que eu não posso estar aqui fora? Eu não vou conseguir trabalhar, eu não vou conseguir realizar meu sonho, eu acho que vocês têm toda razão! Eu sou louco, e quero voltar para o hospício!”

Como o destino é irônico. Quando terminei de destruir meu quarto, e vi – aliviado – que ligavam para o hospital psiquiátrico, o médico que sempre cuidava de mim estava de férias. Mandaram um estagiário com os dois enfermeiros. O estagiário me viu sentado no meio de uma pilha de livros rasgados, discos quebrados, cortinas destruídas, e mandou que a família e os enfermeiros saíssem. 

– O que é isso? – ele me perguntou. 

Eu não respondi. Um louco deve comportar-se como alguém ausente da realidade. 

– Deixa de bobagem – disse o estagiário. – Estive lendo seu prontuário, e de louco você não tem nada. Não vou te internar. 

Saiu, receitou uns calmantes, e (eu soube depois) disse aos meus pais que eu estava tendo a “síndrome da internação”: pessoas normais que por algum momento viveram uma situação anormal – como depressão, pânico etc. – e passam a utilizar a doença como a única alternativa da vida. Ou seja, escolhem ser doentes, porque ser “normal” dá muito trabalho. Meus pais escutaram o conselho, e nunca mais voltaram a me internar. 

A partir daí, o conforto da loucura jamais me seria oferecido de novo. Eu tinha que lamber minhas feridas sozinho, perder as batalhas, ganhar outras, desistir muitas vezes do meu sonho impossível, arranjar empregos burocráticos, até que um dia larguei tudo pela enésima vez, fiz a peregrinação à Santiago de Compostela, e entendi que não poderia continuar negando sempre enfrentar-me com o meu destino: “ser artista.” No meu caso específico, ser um escritor. Então, aos 38 anos, decidi escrever o meu primeiro livro, e arriscar-me no combate que inconscientemente sempre temera: a luta por um sonho. 

Consegui um editor, e este livro (“O Diário de um mago”, sobre a experiencia no Caminho de Santiago) me levou ao “O Alquimista”, que me levou a outros, que me levou a traduções, que me levou a conferências e palestras no mundo inteiro; embora estivesse adiando tanto o meu sonho, agora via não era tão impossível assim, e que o Universo sempre conspira a favor daqueles que lutam pelo que querem. 

Em 1997, no final de um exaustivo tour promocional por três continentes, comecei a notar algo muito estranho: o que eu havia desejado no dia em que quebrei meu quarto, parecia ser uma aspiração coletiva. As pessoas preferiam viver num imenso hospício, seguindo religiosamente regras que ninguém sabe quem criou, ao invés de lutarem pelo direito de serem diferentes. Numa viagem de avião para Tokio, vi no jornal o seguinte texto:

De acordo com o centro de estatística de Canada: 40% das pessoas entre 15 e 34 anos, 33% das pessoas entre 35 e 54 anos e 20% das pessoas entre 55 e 64 anos já tiveram algum tipo de doença mental. Acredita-se que um em cada cinco indivíduos sofra de algum tipo de transtorno psiquiátrico.

 

E eu pensei: o Canadá não passou por ditadura militar, é considerado o país com maior qualidade de vida do mundo, por que será que lá existem tantos loucos? Por que não estão no hospício? 

Esta pergunta me levou à outra: o que é exatamente a loucura? 

Encontrei resposta para as duas. A primeira: as pessoas não estão em asilos porque continuam socialmente produtivas. Desde que você seja capaz de chegar as 9:00 e sair as 17:00 do emprego, você não é considerado incapaz pela sociedade. Não importa se, das 17:01 até as 8:59 você fique em estado catatônico diante da televisão, tenha as mais pervertidas fantasias sexuais na Internet, esteja olhando a parede, culpando o mundo, sentindo-se injustiçado, com pânico de sair à rua, com excesso de higiene, com falta de higiene, com crises depressivas e choro compulsivo. Enquanto você for capaz de comparecer ao trabalho e dar sua cota para a sociedade, você não constitui uma ameaça. Você só ameaça quando o cálice transborda e, de uma hora para outra, sai na rua com uma metralhadora, entra num filme infantil, e mata quinze crianças para alertar ao mundo que “Tom & Jerry” é pernicioso na educação. Enquanto você não fizer isso, você é condenado um ser normal. 

E a loucura? A loucura é a incapacidade de comunicar-se. 

Entre a normalidade e a loucura, que no fundo são a mesma coisa, existe um estado intermediário: chama-se “ser diferente”. E as pessoas estavam cada vez com mais medo de “ser diferentes”. No Japão, depois de ter pensado muito sobre as estatísticas que acabara de ler, me veio a ideia de escrever um livro sobre a minha própria experiencia. Escrevi “Veronika decide morrer” na terceira pessoa, usando o meu ego feminino, porque sabia que a minha experiencia de internação não era o que interessava – mas sim os riscos de ser diferente, e o horror de ser igual. 

Quando terminei, fui falar com meu pai. Depois de passado o período difícil da adolescência e início da minha juventude, meus pais nunca se perdoaram pelo que fizeram. Eu sempre insistia que tampouco tinha sido algo tão sério, e que a prisão (também estive preso três vezes, por razões políticas) tinha me marcado muito mais. Mas meus pais não acreditavam, e viviam se culpando. 

– Escrevi um livro sobre o asilo mental – disse ao meu pai de 85 anos. – É um livro de ficção, mas em duas páginas eu me colocava como personagem. Isso vai tornar público as minhas internações psiquiátricas. 

Meu pai me olhou nos olhos e disse:

– Tem certeza de que isso não vai te prejudicar?

– Tenho, papai. 

– Então vá adiante. Eu já estava cansado de guardar segredo.

 

Veronika decide morrer saiu em agosto de 1998 no Brasil. Em setembro, eu tinha mais de 1.200 e-mails, cartas, narrando experiencias semelhantes. Em outubro, alguns dos temas tocados no livro – depressão, síndrome do pânico, suicídio – foram discutidos num seminário com repercussão nacional.  Em 22 de Janeiro de 1999, o Senador Eduardo Suplicy, lendo em plenário trechos do meu livro, conseguiu aprovar uma lei que já transitava há dez anos no Congresso Brasileiro, proibindo as internações arbitrárias. 

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